sábado, 13 de janeiro de 2007

sobre Borges (10/09/2006)

Tenho lido muito (e com prazer) o escritor argentino Jorge Luis Borges.Leio Borges e seus contos com a mesma atenção com que vejo as coisas mais sérias da vida. Lê-lo é um ato de seriedade: não se permite um só deslize ou desatenção do leitor. Penso que o autor argentino alcançou o mais prodigioso dos objetivos de um escritor: alcançar com suas palavras (seu mundo particular) os mais variados mundos pertencentes aos seus inúmeros leitores. Reflito a respeito disso porque, no meu caso, sempre que leio um de seus contos, vejo neles impressas algumas reflexões que já empreendi durante minha andança pelo mundo. Permita-me o leitor dar dois exemplos apenas: no conto “O Sul”, Borges faz uma comparação (sem revelar) da distância entre o homem ocidental-moderno que pauta sua vida pelo intenso caminhar da história e os homens que vivem sua vida desconectados desse tipo de convenção. Depois (antes no texto), realiza exercício semelhante em relação a um gato com o qual o personagem Juan Dahlmann encontra-se num café para o qual se dirige: “porque o homem vive no tempo, na sucessão, e o mágico animal, na atualidade, na eternidade do instante.” ( Ficções, pp. 188)Não são raros os momentos em que me vejo diante de figuras humanas (ou não) e sou levado a refletir sobre tal questão. Ora, apesar de compartilhamos por instantes o mesmo mundo sensível, a mesma realidade, tenho clareza da não intersecção entre meu tempo e dessas figuras, seja de um casal de imensos filas brasileiros na subida de uma das montanhas da serra friburguense, seja de misteriosos personagens que avisto durante minhas caminhadas noturnas. São vivos? Têm corpos? Pensam? Tenho medo de perguntar... Um outro exemplo se dá com a leitura de dois contos: “Funes, o memorioso” e “Del rigor em la ciência”. Certamente, aprende-se mais sobre ciência e especificamente sobre antropologia (parte do campo científico em que jogo) lendo tais contos do que assistindo alguns de meus colegas antropólogos falarem por horas a fio para suas platéias de alunos ávidos pelo saber. O que de mais fundamental deve se falar sobre etnografia (ou melhor, sobre o risco do etnografismo) senão “no abarrotado mundo de Funes não havia senão pormenores, quase imediatos”, comentário que o narrador do conto faz sobre a incansável (e terrível) tarefa de Funes de se esmerar em descrever a vastidão de todo o mundo. Ou como nesse trecho: “Duas ou três vezes havia reconstruído um dia inteiro; nunca havia duvidado, porém cada reconstrução já tinha requerido um dia inteiro.” (Ficções, pp 125)Ou como na lição dada em “Del rigor em la ciência”, em que um pais na ânsia pelo registro, termina construindo novas cidades para retratar as originais. A mensagem é que evidentemente não se pode fazer uma representação do real na exata medida do real. Seria como construir uma nova realidade. E no conto até se consegue dar fim à atividade, mas quando se consegue, a realidade já se transformou mais uma vez. Ora, tarefa fadada ao eterno insucesso. Por isso, o etnógrafo deve se esforçar por ter como alvo (e assim definir o mais rapidamente possível) uma das dimensões da realidade para não cair no erro de Funes ou dos que pretendem registrar o mundo em termos absolutos.

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