segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

os imortais

"Doutrinada num exercício de séculos, a república dos homens imortais atingira a perfeição da tolerância e quase do desdém. Sabia que em um prazo infinito ocorrem a todo homem todas as coisas. Por suas passadas ou futuras virtudes, todo homem é credor de toda bondade, mas também de toda traição, por suas infâmias do passado ou futuro."

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

dúvidas

E agora? Beber o cigarro ou fumar o café?

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

carcará

Carcará
Lá no sertão
É um bicho que avoa que nem avião
É um pássaro malvado
Tem o bico volteado que nem gavião
Carcará
Quando vê roça queimada
Sai voando, cantando,
Carcará
Vai fazer sua caçada
Carcará come inté cobra queimada
Quando chega o tempo da invernada
O sertão não tem mais roça queimada
Carcará mesmo assim num passa fome
Os burrego que nasce na baixada
Carcará
Pega, mata e come
Carcará
Num vai morrer de fome
Carcará
Mais coragem do que home
Carcará
Pega, mata e come
Carcará é malvado, é valentão
É a águia de lá do meu sertão
Os burrego novinho num pode andá
Ele puxa o umbigo inté matá
Carcará
Pega, mata e come
Carcará
Num vai morrer de fome
Carcará
Mais coragem do que homeCarcará

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

Faltam 8!

Amanhã tem Vasco e Flamengo no Maracanã.
Não sei se vou ao campo, mas o certo é que dou sorte. Acho que vi no estádio a apenas uma derrota. A grande maioria foi de vitórias. Talvez umas sete, no Rio e em Manaus (onde vi um jogão em 96, junto com meus pai e irmão!).
E do início dos anos 90, quando comecei a acompanhar futebol com regularidade, foram certamente mais vitórias. Faltam apenas 8 jogos para que empatemos os números do duelo. Lembro que até a década de 70 (início dela), o Vascão contou com vantagem. Nas décadas de 40 e 50, foi um verdadeiro vareio com a atuação do grande Expresso da Vitória e as formações que o sucederam.
Depois, vieram as décadas de 70 e 80, e a coisa mudou de lado!
Mas logo viraremos o jogo!
E acho que o jogo de domingo é nosso!
Vascooooo!!!

somos todos Preedys?

"A união de Preedy e o mar! Havia vários rituais possíveis. O primeiro consistia no passeio que virara corrida e mergulho direto na água, suavizando-se depois num 'crawl' enérgico e sem salpicos em diração ao horizonte. Mas, é claro, não realmente para o horizonte. De súbito, ele se viraria de costas e levantaria grandes salpicos brancos com as pernas, de certo modo demonstrando assim que poderia ter nadado até mais longe se quisesse, e em seguida ficaria em pé por um pouco fora da água para todos verem quem era.
A outra linha de ação era mais simples, evitava o impacto da água fria e o risco de parecer animado demais. A questão cifrava-se em demonstrar estar tão habituado ao mar, o Mediterrâneo e a esta praia em particular, que tanto poderia estar no mar como fora dele. Consistia numa lenta caminhada e na descida até a beira d'água - nem mesmo notando que os pés estavam molhados, uma vez que, terra e água, tudo era igual para ele! - com os olhos no céu, examinando gravemente os presságios do tempo, invisíveis para os outros ( Preedy pescador local)" ( Samson, William citado por Goffman em seu "A representação do eu na vida cotidiana")

Entender a vida social como cenário: uma das possibilidades! Somos atores? Mas há algo por trás de nossas máscaras, um eu específico e secreto? Algo que una todos os papéis sociais sob um mesmo signo?
Penso que sim! Mas, como se sabe, eu sou eu: não domino todos os scripts.
Talvez o João da Ega real fosse mais enérgico e apontasse a verdade.

sexta-feira, 7 de setembro de 2007

07 de setembro

Há 185 anos, deixávamos de fazer parte do antigo Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Muita coisa mudou de lá pra cá. De uma população de um pouco menos de 4 milhões de habitantes, passamos para outra já pomposa de quase 190 milhões de almas. Somos mais em quantidade, e o Brasil desde a independência já contribuiu para a humanidade com originalidade em várias dimensões das artes, comportamento e vida social.
Mas o que ficou daqueles tempos? Certamente, continuamos a viver numa sociedade segregada entre brancos e negros. Outras variáveis fazem parte desse caldo de coisas, mas a segmentação social encontra raízes nas diferenças étnicas. Tanto os descendentes de índios quanto de negros ainda não são atendidos pelo Estado brasileiro como o são os brancos.
Restaram nossos nomes portugueses, ó pá! Joãos, Manuéis, Joaquins, Thiagos, Andrés, Marcellas, Floras, Sebastiões continuam entre nós. Ficaram, por conta de ondas migratórias do período e de outros momentos, as lembranças de nossos avós, bisavós, e nossos sobrenomes.
Ficou também a burocracia carregadíssima cheia de nobreza da tradição ibérica.
Acho que ainda somos um pouco uma terra que se tornou um imenso Portugal!
Ah, e ficou o Vasco , grande clube que carrega a cruz, símbolo dos descobrimentos e da coragem lusitana!

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

ser assim ou ser assado (mesmo)


Entendam a razão de eu ter medo de morar no meio de uma floresta distante lá no alto da última montanha antes do céu, embora isso cheire à alegria e liberdade:


"Embora nesse estado (o civil), o ser humano se prive de muitas vantagens que frui da natureza, ganha outras de igual monta: suas faculdades se exercem e se desenvolvem, suas idéias se alargam, seus sentimentos se enobrecem, toda a sua alma se eleva a tal ponto que, se os abusos dessa nova condição não o degradassem freqüentemente a uma condição inferior àquela de onde saiu, deveria, sem cessar, bendizer o instante feliz que dela o arrancou para sempre e fez, de um animal estúpido e limitado, um ser inteligente e um homem."

(citação do "Contrato social" do genebrino Jean-Jacques Rousseau)

sexta-feira, 31 de agosto de 2007

viva o anônimo!

Ontem, assisti a um interessante documentário sobre o cineasta paraibano Vladimir Carvalho. Chama-se "Vladimir Carvalho: conterrâneo velho de guerra".
Numa das declarações dele reunidas no filme, ele fez uma interessante analogia entre a trajetória do início de sua vida profissional e o objeto de atenção de seus inúmeros filmes. E o que aproxima as duas dimensões envolvidas em tal analogia é a condição coadjuvante dos personagens envolvidas.
Quando começava a pensar e fazer cinema, sua intenção era ir aos lugares onde estivesse se desenvolvendo importantes movimentos de vanguarda cinematográfica. Assim, ele sai da Paraiba rumo à Bahia e depois ao Rio. Em ambos os casos, ao chegar ele percebia que os movimentos em suas fases mais essenciais já tinham ocorrido. Quando ele chega ao Rio, por exemplo, se dá o golpe de 64 que diminui e muito as possibilidades do Cinema Novo. Engraçado ele se perguntando: "será que eu vou sempre ser coadjuvante, tô sempre atrasado..."
Depois de alguns ocorridos cheios de imponderáveis e sorte, ele é convidado a dar aulas na UnB de Cinema. E , feliz da vida, vai! Então, passa a tentar retratar os aspectos de vida desse grande coadjuvante da história que é o homem comum, o homem pobre do povo em suas mais sólidas e particulares demonstrações de força.
Interessantíssimo pensar nisso: na verdade, o grande elenco desse palco mundial não é retratado. Às vezes, vive o mundo sem deixar vestígios escritos, por exemplo.
E a gente vive num tempo doido em que cada vez menos gente quer ser anônimo. Na era do espestáculo, da imagem, vive-se a ditadura do estrelato.
Lembro de um filme "Amantes constantes" em que a um cara é perguntado qual é seu sonho para vida profissional. Ele responde que decidiu ser pintor. O interlocutor se anima identificando ali um jovem artista e pergunta pelas suas influências. E ele diz: "Não, mas eu quero ser pintor de parede. Quero ser anônimo." A citação ganhou as cores que a minha memória deu. Evidente que não lembro dela assim com tanta perfeição.
Rapaz,
Tem umas horas que bate uma vontade de escrever, né não? Pelos mais diversos motivos!
Um filme que se assiste, um céu azul que faz brilhar a vida, um bom beijo da bela amada.
Hoje, o que me fez escrever foi uma doce brisa perfumada que entrou na Baía de Guanabara, vinda de não sei onde e indo pra onde eu não sei.
Tudo ficou azul no dia nublado, tudo silêncio na selva da urbe. Os chatos se foram, e os cães foram libertados das coleiras das madames cheias de dignidade e decência. Os homens sérios se coçaram.

quarta-feira, 18 de julho de 2007

mais de dois meses depois...

Volto a escrever aqui. Vai ser um pequeno texto pois! Minha preguiça continua grande e severa.
De maneira geral, tenho escrito muito pouco.

quarta-feira, 9 de maio de 2007

16 graus em Niterói

Parece que agora se inicia mesmo o período do friozinho no Sudeste. Quer dizer, friozinho cá por Niterói. E mais, friozinho para quem é daqui: para quem nasceu na Amazônia, qualquer temperatura abaixo dos 24 graus já é frio.
Hoje, 9 de maio, em Niterói faz agora 16 graus às 15 e 30. Noutro dia, peguei 6 graus e meio em Friburgo. Naquela parte do sudeste brasileiro, o frio é grande.
De qualquer forma, é uma boa época para ler e ficar em casa. E curtindo o friozinho, li isso:

"e a vida continuava, continuava, continuava, com um colar de arroz em que cada grão levasse uma paisagem pintada, grãos diminutos e paisagens microscópicas, e eu sabia que todos punham o colar no pescoço mas ninguém tinha suficiente paciência ou força de ânimo para tirar o calor , aproximá-lo dos olhos e decifrar grão a grão cada paisagem, em parte porque as miniaturas exigiam olhos de lince, olhos de águia, em parte porque as paisagens costumavam proporcionar surpresas desagradáveis..." (Bolaño, Noturno do Chile, Ed. Cia das Letras)

Acho o autor dessas palavras um cara muito interessante. Em parte, talvez, porque já morreu e não pode falar mais do que já escreveu. Talvez se tivesse por aí falando coisas das quais discordo,
não gostasse tanto dos seus textos.
É isso!

quarta-feira, 18 de abril de 2007

e o jornal fechou!

O último artigo que eu postei aqui foi publicado no jornal O Estado do Amazonas.
E o jornal fechou! Parece que foi vendido para outro grupo: deve reabrir com um novo nome e outra linha editorial, fenômeno que é cada vez mais comum entre os meios de comunicação brasileiros.
Mas a tendência é que surja um novo espaço de publicação lá em Manaus.
E é bom ter um lugar para publicar pequenos textos, e participar um pouco da realidade manauara.

quinta-feira, 5 de abril de 2007

À rua!

"Quando abrir a porta e assomar à escada, saberei que lá embaixo começa a rua; não a norma já aceita, não as coisas já conhecidas, não o hotel em frente; a rua, a floresta viva onde cada instante pode jogar-se em cima de mim como uma magnólia, onde os rostos vão nascer quando eu os olhar, quando avançar mais um pouco, quando me arrebentar todo com os cotovelos e as pestanas e as unhas contra a pasta do tijolo de cristal, e arriscar minha vida enquanto avanço passo a passo para ir comprar o jornal na esquina."

O trecho acima é de um conto de Cortázar "Manual de instruções". Pode ser encontrado numa boa coletânea de contos "Os 100 melhores contos de humor da literatura universal" organizado por Flávio Moreira da Costa

segunda-feira, 2 de abril de 2007

A Amazônia e o aquecimento global

O pequeno texto é fruto de uma preocupação minha a respeito da Amazônia, entendida no contexto do combate ao aquecimento global. Minha preocupação é que os amazônidas apresentem ao mundo soluções no trato com a floresta, e não o inverso.
Assim como movimentos políticos carecem de legitimidade quando não tem base, também soluções pros problemas locais e do mundo devem partir das realidades comunitárias.
Quem, melhor que um caboclo da terra, pode falar melhor do rio Madeira, por exemplo? Essa é a perspectiva que busco exaltar!




A Amazônia e o aquecimento global


Nos últimos tempos, assiste-se a consolidação da discussão a respeito dos problemas ambientais globais. A minha intenção é a de apontar ao leitor o quanto do reconhecimento dos variados processos de degradação ambiental é um fenômeno de cunho político. Evidentemente, tal fenômeno também carrega reverberações do ponto de vista econômico.
Entre os elementos elencados pelos principais atores políticos enquanto vetores no debate sobre a degradação ambiental, está o aquecimento global. É o problema do aquecimento global o que mais chama a atenção entre os estudiosos da questão ambiental e executores de políticas públicas.
Ora, e no que consiste o aquecimento global? Trata-se da progressiva impossibilidade da natureza em absorver a grande (e cada vez maior) quantidade de emissão de dióxido de carbono na atmosfera. Tal substância, aliada a outros elementos químicos, impede a saída de parte dos raios solares da atmosfera. Isso ocasiona o aumento da temperatura do planeta. Isso é fato comprovado cientificamente!
O que se discute são os efeitos e conseqüências do aumento da temperatura ao redor da Terra. E é nessa discussão eminentemente política que quero entrar, especialmente pelo fato de ser o desmatamento da Amazônia, através das grandes queimadas, apontado como um dos principais pólos de emissão de dióxido de carbono. O Brasil, muito em virtude de tais queimadas na floresta, tem sido apontado como o quarto maior poluidor da atmosfera da Terra.
Essa afirmação, embora verdadeira, é capciosa. O Brasil é o quarto maior poluidor da atmosfera em termos absolutos. Não deixa de chamar atenção, entretanto, o fato de outros países serem mais industrializados do que o nosso e estarem atrás nesse triste ranking. Acontece que outras regiões do mundo contribuíram historicamente e contribuem muito mais que o Brasil, em termos relativos. Assim, é possível prever que se existisse um índice para apontar a contribuição por indivíduo para o aquecimento global, o Brasil estaria muito atrás da Holanda ou da Bélgica, pequenos países.
Não quero apresentar a idéia que o Brasil e a Amazônia não devam impor limites ao desmatamento e à emissão de dióxido de carbono de suas indústrias. Acontece, entretanto, que devemos estar alertas a esse jogo político das grandes potências que tentam imputar a todos os países do mundo a mesma responsabilidade que a sua para o combate às mazelas ambientais.
Os Estados Unidos da América, por exemplo, até hoje se recusam a serem signatários do Protocolo de Kyoto, acordo internacional que reúne perspectivas de combate ao aquecimento da Terra. Não se pode deixar de citar a importância de iniciativas como a da União Européia que propôs uma redução de 20% dos níveis de poluição de suas indústrias de 1990, de forma unilateral.
Surge a possibilidade de os amazônidas apresentarem ao mundo, nesse momento de crise ambiental, propostas de desenvolvimento com tecnologia endógena e não poluente. Ganham importância os variados modelos de desenvolvimento sustentável de comunidades ribeirinhas e povos indígenas, que devem contar com o crescente apoio das instituições de fomento da região. Mora aí uma das possibilidades de contribuição original da Amazônia para o mundo.

terça-feira, 6 de março de 2007

existência enquanto sonho de outrem

"Numa alvorada sem pássaros, o mago viu cingir-se contra os muros o incêndio concêntrico. Por um instante, pensou refugiar-se nas águas, mas depois compreendeu que a morte vinha coroar sua velhice e absolvê-lo de seus trabalhos. Caminhou contra as línguas de fogo. Estas não morderam sua carne, estas o acariciaram e inundaram sem calor e sem combustão. Com alívio, com humilhação, com terror, compreendeu que ele também era uma aparência, que outro o estava sonhando." (Borges, Jorge Luis. As ruínas circulares in Ficções)

É , eu sei. A realidade é dura. O que se vai fazer? Ainda acredito que as relativizações podem ser importantes...

segunda-feira, 5 de março de 2007

grandes jogos e bons livros

Sou um fã de futebol. Sou desses inebriados pela emoção. Tenho um time: isso é fato e não abro mão! A despeito disso, sempre que vejo um jogo, me pego a torcer por um dos lados. Os elementos que me fazem torcer pela vitória de um time sobre o outro são variáveis, e a eles não quero me dedicar aqui. Posso dizer apenas que são variações de rivalidades desde o nível regional até o global: nunca torço pelo Flamengo nem pelo Real Madrid, por exemplo.
A emoção com a qual lido quando assisto futebol me impede de ver o jogo com algum grau de racionalidade. Às vezes, vejo um jogo com alguém e depois do jogo esse alguém me pergunta: “o fulano jogou muito, não?” E eu me ponho a pensar e a tentar lembrar das ações do referido jogador durante a partida. E , em geral, não registro a atuação de um jogador se ele não fez, ao longo da partida, uma espetacular jogada ou um gol. Essa sensação de alheamento aumenta ainda mais com a minha presença no estádio. São tantos os elementos que me chamam a atenção num estádio que o jogo termina se configurando como uma série de fotografias que vou registrando e adequando a uma linha temporal: faço um filme do jogo. Imagino ter mais entendimento sobre o futebol do que a média dos que gostam do jogo. Sei das diferenças básicas de um 4-3-3 para um 3-5-2. A questão para a qual sempre reservei pouca atenção é a dinâmica dos jogadores dentro desses esquemas. E se há alguma coisa importante no futebol é essa dinâmica e os jogadores que a movem. Há uma grande diferença entre se dizer que dois times jogam com dois atacantes, se eu souber que em um desses times os atacantes são o Romário (até uns cinco anos atrás) e o Ademir de Menezes (artilheiro do Expresso da Vitória vascaíno da década de 40 e da Copa de 50).
Talvez essa dinâmica futebolística surja melhor aos olhos mortais em jogos que começam com um grande equilíbrio e passem a uma goleada. É nesses jogos que os comentaristas futebolísticos surgem com aquelas frases “o sicrano entrou e mudou o jogo”. Há de se perguntar: mudou como? Certamente, mudou porque além de entrar abençoado por todos os santos serviu pra alterar a engrenagem da equipe em que atua.
Diante disso, o grande time é aquele que atua sob diferentes toadas, sempre diante das diferenças dos adversários, ou seja, um time que consegue se readaptar a diferentes jogos e necessidades. Um time simplesmente bom pode vencer sempre que começa ganhando, mas pode ser goleado se começar levando um gol. O grande time é capaz de se transformar diante das variadas situações de jogo.
Mas acho mesmo é que são os grandes jogos, não necessariamente de grandes times, é que disparam nos torcedores o gatilho da emoção, e que (como diria Lévi-Strauss) fazem pensar. São nos grandes jogos de futebol que é possível enxergar várias possibilidades e alternativas de resultado: das espetaculares viradas, aos maravilhosos 0x0 repletos de chances de gol. Pensemos aqui no famoso lance, na Copa de 70, em que Pelé bota ao chão o goleiro uruguaio e chuta a bola a poucos milímetros da baliza direita. Às vezes, um gol perdido marca mais (pro bem ou pro mal) a história sentimental de um torcedor (ou de uma torcida) do que um desses simples tentos que se vê nos programas esportivos.
São também os grandes, e ousados, livros que fazem pensar. Fazem com que os leitores atentem para as diferentes estratégias textuais dos escritores. E é por isso que agora escrevo. Li um grande livro e indico: trata-se de “Os detetives selvagens” do chileno Roberto Bolaño. A apreensão que eu tive do texto foi, além da ousada técnica de texto usada pelo autor, a de uma bela aventura na tentativa de discernir a complicada e multifacetada identidade latino-americana. Certamente, entretanto, assim como são vastas as possibilidades (objetivas e subjetivas) de se entender um grande jogo de futebol, são muitas as dimensões capazes de marcar o leitor desse livro.

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2007

Bruxaria!

Sempre reencontro as pedras no caminho. É curioso pensar que em pedras com as quais já topei exista até algo de íntimo.
Noutro dia, pensei nisso: andando pelas ruas em Manaus, dei uma clássica topada, dessas que de tão dramáticas provocam risos e inquietações em quem está próximo. Nutro a mania de, depois desses episódios que enchem de vergonha, olhar severamente para o problema. E o problema em questão, as pedras, também merecem severas reprimendas, de modo que as olho como que para ralhar.
Numa dessas olhadas pretensamente intimidadoras, encontrei uma velha amiga, uma pedra que já quase me derrubara em outras latitudes. A danada tinha viajado só para me fazer de bobo a léguas de distância. O acaso...
Entre os Azande, povo alvo das investigações do antropólogo inglês Evans-Pritchard, essas coisas que parecem só encontrar explicação no mais absoluto acaso, são entendidas como sendo fruto de bruxaria ou feitiçaria. Lembro de alguns dos exemplos usados pelos Azande para comprovar tal justificação do acaso: um dos exemplos dizia respeito à reflexão desse povo sobre as circuntâncias nas quais uma velha e abandonada casa havia caído sobre um indivíduo que a usava regularmente para tirar uma soneca depois do almoço.
Ora, tentava demonstrar Evans-Pritchard portador de toda a racionalidade ocidental: se a casa era reconhecidamente velha e abandonada e o camarada a usava regularmente, o caso estaria explicado. Os nativos, entretanto, replicavam: tudo bem, era velha e uma hora iria mesmo ruir, mas por que ser o desabamento justo no período (poucos minutos durante o dia) em que o sujeito dormia por ali? Bruxaria!
Também acredito em bruxaria, é aquele quê restante à realidade que a impede de ser racional. Acreditar em bruxaria, sob a visão Azande, é ser o máximo racional. Ora, a realidade que carece de sistematizações precisa por vezes ser enquadrada: ciência, religiosidade ou bruxaria.
Penso aqui no seguinte caso: um jogador (desses craques que só os campinhos de futebol brasileiros conseguem produzir) nunca erra um chute da marca do pênalti, nem sob chuva e nem debaixo do sol mais abrasador. No mais importante jogo de sua carreira, contudo, chuta a pelota na trave. Bruxaria!
Aliás, a trave funciona quase como uma fronteira: está ali para marcar o limite entre a incompetência e a bruxaria. Se a bola vai pra fora, pode-se concluir o mau trato à redonda. Se vai na trave, não se deve culpar o batedor: o cara fez tudo certo e , putz, a bola (ela ganha, nesses casos, até vontade própria) “quis” ir na trave.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2007

"del rigor en la ciencia" de Borges ou de como a vida não tem tradução

"En aquel Imperio, el arte de la Cartografía alcanzó tal Perfección que el mapa de una sola Provincia ocupaba toda una Ciudad, y el mapa del Imperio toda una Provincia. Con el tiempo, esos Mapas Desmesurados no satisficieron y los Colegios de Cartógrafos levantaron un Mapa del Imperio, que tenía el tamaño del Imperio y coincidía puntualmente con él. Menos Adictas al Estudio de la Cartografía, las Generaciones Siguientes entendieron que ese dilatado Mapa era Inútil y no sin Impiedad lo entregaron a las inclemencias del Sol y de los Inviernos. En los desiertos del Oeste perduran despedazadas Ruinas del Mapa, habitadas por Animales y por Mendigos; en todo el País no hay otra reliquia de las Disciplinas Geográficas.”SUÁREZ MIRANDA: Viajes de varones prudentes, Libro Cuarto, cap. XLV, Lérida,1658.”

terça-feira, 23 de janeiro de 2007

vislumbrando uma nova Manaus

Postarei aqui um pequeno artigo que tentarei publicar num jornal amazonense. Antes disso, disponibilizarei-o aqui. Trata-se de uma pequena reflexão sobre o "retrato" de símbolos da sociedade amazonense através da minissérie global "Amazônia". Tento apresentar a atualidade de se falar na ultravalorização de alguns símbolos por essa sociedade, apesar das evidentes transformações do mundo capitalista.
O que quero dizer, no fundo, é que quanto à sociedade amazonense mudaram algumas formas simbólicas, mas a essência da valorização de símbolos da cultura material ainda é muito forte.
Torço para que isso mude: só de outra forma é possível transformar um pouco a realidade.
É Isso!
Abaixo o texto:


Manaus: ontem, hoje e amanhã


Nos últimos tempos, o Brasil tem sido apresentado a um momento histórico da sociedade amazonense, através de uma produção televisiva de uma das emissoras de TV com alcance nacional. Tal momento se refere ao ápice do ciclo econômico da borracha, que engendrou o acúmulo de imensas fortunas pelos proprietários dos grandes seringais. Evidente que a mais fortuna ainda tiveram acesso os importadores da borracha que a transformavam em produtos industrializados, posteriormente revendidos aos endinheirados da borracha por um valor de mercado certamente maior.
A despeito de alguns símbolos manejados pela produção serem exagerados, salta aos olhos para os outros brasileiros a representação de um quadro de coisas muitas vezes reproduzido oralmente na sociedade amazonense. E que quadro é esse? É o do fausto econômico, do esbanjamento, do orgulho pela abundância da riqueza que circulava pelas ruas de nossa capital, mas que era obtida através do suado (e mal pago) trabalho de seringueiros espalhados pelo interior do estado. Um livro do português Ferreira de Castro de título “A selva” apresenta ao leitor a sofrida vida dos trabalhadores nos seringais.
Uma cena imaginária me acompanha desde a meninice: um rico coronel da borracha a enrolar seu tabaco com uma nota de cem mil réis. Como amazonense, nem precisei de livros para chegar a essa informação. Provavelmente, uma de minhas avós me narrou a história chegada a ela já mediada por um outro antepassado.
O que eu quero propor à análise dos leitores aqui é o seguinte: até que ponto a sociedade manauara é diferente do que foi nos tempos da borracha? Sem dúvida, os tempos do capitalismo são outros: hoje em dia um dono de um seringal não seria agraciado por tamanho poderio econômico. Certamente, ficaria acabrunhado no provincianismo de suas terras. O esbanjamento que acometeu nossos coronéis na virada do século XIX pro século XX se inseria num quadro ideológico que pintava as cores das vidas dos dândis e bon vivants. Esbanjar era um símbolo de riqueza e prestígio. Hoje, o esbanjamento já não é bem visto ou valorizado pela elite econômica.
É através dos símbolos que os indivíduos podem comunicar à sociedade o que são. Numa sociedade em que a mobilidade social é existente como na brasileira, os símbolos ganham forma que vão desde a vestimenta trajada até o celular usado. E se vêem espalhados pelas ruas da cidade tais símbolos em movimento nas mãos ou nos corpos dos manauaras. Em termos gerais, no capitalismo é melhor quem tem mais. E nisso Manaus não mudou, bem como grande parte do mundo.
Há, entretanto, um símbolo também capaz de conferir prestígio, que proporciona o acesso ao conhecimento. Tal símbolo, mais valorizado em outras partes do mundo, proporciona a quem ganha intimidade com ele a possibilidade de vislumbrar outras realidades possíveis. Mostra a história que as sociedades mais íntimas ao conhecimento e à educação conseguiram resolver seus problemas e avançar muito mais que as que não o valorizam. O símbolo, que na verdade é um instrumento, do qual trato é o livro. Se víssemos, e eu espero que um dia chegaremos a isso, tantos livros pela cidade quanto celulares e automóveis, mais rapidamente teríamos mais ciência da nossa contraditória sociedade e avançaríamos rumo a um melhor mundo.

sábado, 20 de janeiro de 2007

do discurso sobre o filho-da-puta

Vivemos num mundo em que a diversidade é cada vez mais ameaçada por um tipo de exaltação massiva de um modelo de vida, em que ganha importância o "ter" e perde o "ser". Por vezes, a idéia de cidadania política já se vê substituída por um tipo de cidadania do consumo. Só fala quem compra, só escreve quem paga! E mais e mais, o mundo vai ficando silencioso.
Tenho lido um livro publicado pela editora Achiamé. Chama-se "Discurso sobre o filho-da-puta" que, de uma forma alternativa, questiona o processo de reprodução do cada vez mais complicado mundo em que vivemos.
Publico abaixo um pequeno trecho do livro de Alberto Pimenta:

"filhos-da-puta vocacionados para fazer e filhos-da-puta vocacionados para não deixar fazer, e estes (desde já se pode afirmá-lo) são os dois tipos universais e eternos de filho-da-puta. Há, naturalmente, subtipos e especializações funcionais com funções especiais: modos de fazer e de não deixar fazer, de fingir fazer e deixar fazer, ou de fingir não fazer e não deixar fazer; no entanto, quer os dois tipos, quer os vários subtipos de filhos-da-puta, todos eles são primeiramente e acima de tudo filhos-da-puta e disso todos estão bem cônscios. É por isso que nem sempre podemos e devemos delimitar rigidamente estes tipos, dado que eles são flexíveis e constantemente se entrecruzam e interpenetram e, sobretudo, constantemente se ajudam e entreajudam. (...) Todo o filho-da-puta especializado em fazer faz tudo o que possa contribuir para que a vida não corra despreocupadamente; todo o filho-da-puta especializado em não deixar fazer não deixa fazer nada que possa contribuir para que a vida corra despreocupadamente. (...) É longa, muito longa, a lista do que pode fazer um filho-da-puta especializado em fazer: desde normas e adendos e emendas de formas, até decretos oblíquos e retos , e despachos discretos, não há nada, não há praticamante nada que um filho-da-puta especializado em fazer não possa fazer."

sábado, 13 de janeiro de 2007

mudanças

Não procurei me informar muito, mas parece que o blogger foi comprado pelo Google.
Isso não mudaria nada a política desse blog. O que aconteceu , entretanto, é que meu último post não tinha sido publicado até hoje. Tinha postado em 09 de janeiro.
Cheguei à conclusão que devia entrar nesse novo blogger. Por isso, até o endereço do blog mudou: passou a ser joaodaega.blogspot.com
Isso, de certa forma, foi bom. Pude retirar alguns posts dos quais não gostava tanto, ou aqueles grandes demais. Assim, retirei uma entrevista do professor Renato Lessa publicada no jornal "Valor Econômico" e um texto de um sociólogo argentino sobre o polonês Bauman.

Para não perder totalmente a linha temporal do blog, revelei ao lado dos títulos de cada post a data de sua publicação no antigo blog. É isso aí!!
Abraço

Niterói (09/01/2006)

Andava desencantado em relação à bela cidade onde moro. Tenho sentido muito calor, nesses tempos de verão. Talvez eu continue aborrecido com o calor e com o tempo que parece não andar por essas bandas: Bandas d'Além é onde vivo. Mas não é a respeito de aborrecimento que eu vim falar por aqui.Talvez o assunto aqui seja reencantamento, algo possível (ainda bem!) sempre que o sol volta a brilhar.Andava pelas ruas de meu bairro rumo à UFF, e resolvi entrar mais uma vez no Museu Antônio Parreiras. Sempre achei bela a casa, que impõe um tom bucólico na floresta de prédios que a cerca. Há um grande jardim com bancos, espaço verde.Sempre gostei menos de ver as pinturas do paisagista Parreiras. Não que sejam ruins. O motivo não é esse! É que são quase sempre expostas as mesmas coisas, de maneira que visitar o espaço ganha um grande repetitividade.Pois bem, hoje a coisa não foi assim. Tratava-se de um pequena exposição de quadros com paisagens de Niterói ao longo dos tempos. Os quadros eram assinados tanto por Antônio Parreiras quanto por outros pintores. Um deles me permitiu saber que um espaço de Niterói que eu pensava meu já havia sido desbravado por outros, inclusive tendo sido retratado. Falo de um lugar encravado entre as pedras da Ilha da Boa Viagem de frente para a saída da Baía de Guanabara. Ali, costumo pegar sol e dar uns mergulhos solitários.Além disso, soube que subindo o morro, que faz parte do terreno da casa, tem-se acesso a mais uma casa que o pintor construiu pro filho, e um grande atelier. Belíssimo lugar!! Conta com um grande espaço de área verde que eu não conhecia com bancos. Soube que a área tem 5 mil metros quadrados e vai até os muros das casas de São Domingos do outro lado da pequena montanha.Penso em ler por lá pelas manhãs!E saí de lá (na volta à barulheira da vida metropolitana) alegre e satisfeito de morar nas Bandas d'Além.

ano novo!! (31/12/2006)

Quase num novo ano por essas bandas tropicais! Que seja um bom ano pra todos!!Depois de ficar massacrado pelo calor niteroiense, os ares da serra renovaram as esperanças.Renovadas as esperanças, coloco aqui um artigo escrito por mim e publicado pelo jornal "Estado do Amazonas".Já devo ter escrito sobre isso, mas a satisfação de escrever algo e ser lido por mais do que os integrantes de uma banca acadêmica é grande. Por isso, sempre fico feliz quando acontece!O artigo trata de um olhar sobre a realidade urbana e uma reflexão a respeito do imaginário de uma cidade protagonista de pelo menos dois grandes ciclos econômicos, mas que precisa se integrar ao mundo criando e propondo soluções endógenas, capazes de trazer à baila a maioria da população (sempre alijada do fausto econômico).É isso!Torço para que o próximo ano seja bom pro mundo, em especial, aos seres humanos mais próximos de mim.Feliz ano novo e abraço a todos!!


POR MAIS VOZES NA CIDADE
Noutro dia, tomei um táxi em Manaus. Num dia quente, as ruas da cidade estavam entupidas pelos carros. Depois de alguns minutos, perguntei ao taxista se aquele fenômeno era normal. Ele me disse que sim: todos os dias passava pelo mesmo. Perguntei o que ele achava daquilo. Respondeu-me que pensava que isso era inevitável já que a cidade estava crescendo e se modernizando. Dessa forma, a única coisa a fazer era esperar.
O episódio narrado demonstra o quanto a “modernização” de Manaus parece ocorrer à revelia de grande parte da população da cidade, como se fosse possível uma cidade se desenvolver sem a participação de seus habitantes em tal processo.
Tal alheamento de grande parte da população de um processo de modernização não é inédito em nossa história. Mesmo na historiografia sobre a realidade urbana de Manaus, não são poucos os relatos que põem em paralelo todo o fausto trazido pelo dinheiro da borracha à cidade, com melhoramentos que superavam os da então capital federal Rio de Janeiro, e a realidade muito distinta de outras partes da cidade distantes do circuito das óperas e cafés.
O atual fluxo modernizador tem como vetor básico o Pólo Industrial de Manaus. Manaus passa a ser vista e se identificar como uma cidade industrial, tecnológica, portanto antenada à rede das grandes cidades mundiais. Manaus, mais uma vez, se encontra num redemoinho que reúne vultosas quantias de seu parque industrial e uma péssima qualidade de vida de grande parte de sua população. Tal contradição profunda é conhecida por quem minimamente reflete sobre a condição sócio-econômica da população de Manaus e do Amazonas.
Chamo atenção aqui para uma outra dimensão capaz de revelar mais um aspecto da contradição que apontei acima. Não é raro ouvir ou ler discursos de atores sociais manauaras com acesso aos meios de comunicação que dão conta da inequívoca entrada de Manaus a um rol de cidades-pólo de alguns símbolos de poderio econômico. Quanto mais sofisticados restaurantes, lojas de grife presentes em importantes cidades do Brasil e do mundo, mais espaços caracterizados como globais, mais Manaus estaria inserida num quadro ideal de modernidade.
É evidente que a própria realidade oferece elementos para contrabalançar todo esse avanço. E se há uma característica que permita a uma cidade se pretender moderna é a complexidade de seus atores sociais e das relações entre eles. Tal realidade multifacetada não falta à Manaus. Ausentes são a inclusão e a legitimação no espaço público de uma maior quantidade de discursos de personagens de Manaus, o que poderá conferir às representações a respeito da cidade uma heterogeneidade que já lhe é peculiar.
Fundamentais nesse processo seriam o fortalecimento de entidades de classe (de sindicatos patronais ao de trabalhadores), do movimento estudantil, enfim de grupos que de alguma forma representassem as variadas visões a respeito de cidade e modernidade, além de fóruns de discussão que possibilitassem a reunião desses pontos de vista.
Não nos furtaríamos a ouvir as maravilhas da Manaus vivida pelos segmentos no topo da pirâmide social, mas escutaríamos os outros anseios da base da população.

Papillon (25/11/2006)

Recentemente, li “Papillon” do francês Henri Charriére. O livro é um libelo pela liberdade e pelo questionamento das verdades da sociedade ocidental. A todo momento, o autor pergunta a nós leitores se alguém pode ter a regalia de definir o futuro inteiro de outrem. O que daria legitimidade a um sujeito com tal poder de decisão? Povoa mais ainda o romance a possibilidade de recuperação individual. Qual o argumento capaz de convencimento a respeito da impossibilidade de um indivíduo, especialista em erros e atropelos ao longo da vida, acordar um dia e estar pronto a redimir-se dos antigos pecados? Ora, se todo mundo que reflete sobre os tempos atuais está convencido da “liquidez” (como diria Zigmunt Bauman) da vida, ou seja, que todas as certezas de um indivíduo ou tudo que o cerca, do mais abstrato ao mais institucionalizado dos elementos, pode mudar a ponto de o embasbacar e paralisar, também se pode partir do pressuposto de que o indivíduo outrora perigo para os outros da sua sociedade, pode mudar pra melhor. Não que eu me declare aqui um otimista em relação aos avanços da humanidade: matamos Sócrates, o melhor dos seres humanos. Mas a história do personagem principal, condenado à prisão perpétua aos 25 anos de idade na colônia francesa da Guiana aponta as possibilidades de resistir. Mesmo que tudo em volta o apontasse à eterna condenação, Papillon se convencia que sairia, fugiria e voltaria a ser livre. O livro é longo, como foi longa a vida de Papillon entre as grades, apesar de repetidas tentativas de fuga. Um dos trechos que mais me chamaram a atenção foi o momento em que o personagem é enterrado numa horrível cela, onde devia permanecer incomunicável. Papillon se dá conta que enquanto pudesse pensar e sonhar, estaria lá a resistir e contar os dias para próxima tentativa de fuga. Isso lembra muito o Thoreau que, mesmo preso, se considerava livre.Quanto ao autor Henri Chattiére, que foi realmente preso e fugiu da prisão na América do Sul, há polêmicas. Um jornalista brasileiro chamado Platão Arantes afirma, e parece ter argumentos pra isso, que Chattiére não é o verdadeiro autor do livro, e sim um outro francês René Belbenoit. Esse último, também fugitivo da Justiça francesa, teria morado em Roraima, e ao passar o livro para Chattiére que seguia pros Estados Unidos, perdeu o manuscrito. Chattiére teria olhado pro material, dado uma recauchutada e publicado. Quem quiser se informar, há sites por aí que dão conta da discussão. A despeito dessa discussão, vale a pena ler!

Vasco!! (01/11/2006)

Hoje o Vasco tomou uma bordoada: 6 a 4 de um coadjuvante paranaense. Engraçado isso! O Vasco perde e eu me sinto mais ainda vascaíno. A identidade ganha mais uma dimensão com as derrotas.Na semana passada, fui ao Maracanã e escrevi isso a respeito:Não ia ao Maracanã há muito tempo. Fora do Rio, assistia aos jogos do Vasco pela televisão. A dolorosa final da Copa do Brasil passou assim pelos meus olhos. Estava em Manaus e lá, apesar da distância do templo maior do futebol, a rivalidade entre Vasco e Flamengo é muito grande. Lá, a polarização entre as duas torcidas é ainda maior. Certamente, embora isso não se meça facilmente, o Clássico dos Milhões é o jogo que envolve mais paixão por todo o Brasil.Quis o destino que a volta ao Maracanã se desse com mais um Vasco e Flamengo. Tive a sorte e o prazer de ter ao meu lado meu irmão na torcida por nosso time.E como o Maracanã está belo, com os melhoramentos para os Jogos Panamericanos. E, numa quinta-feira à noite, se encheu de cores para o jogo. Mais de 40.000 foram ao estádio.No primeiro tempo, a melhor atuação do Flamengo assustou a torcida vascaína. Os fantasmas do passado próximo não saem de perto. Parecia que o Flamengo mais uma vez nos venceria. Mas aí começou a redenção com um gol do meia Abedi depois de uma jogada sensacional do vascaíno Jean.A partir de então, o que se viu foi uma belíssima manifestação de amor da torcida do Vasco que se envolveu quase que visceralmente com o time para levá-lo à vitória. Passamos todo o intervalo do jogo, quando ainda se via o empate no placar, cantando e vibrando. E o time na volta para o segundo tempo veio para vencer. E venceu!Mas o principal de tudo isso foi olhar pro lado e ver meu irmão feliz. Extasiado com a vitória, maravilhado com a beleza daquela festa da qual ele não participava fisicamente há muito tempo, mas sempre vai ser protagonista: a de vibrar pelo Vasco no Maracanã. Ele dizia sem parar: “lindo, lindo, isso tudo é muito lindo”. E eu assentia: tudo aquilo era mesmo lindo. Uma confraternização de milhares que não se conhecem, mas íntimos naqueles gestos que cercavam aquele instante. O fundamental ali era ser vascaíno! Felizes com mais uma vitória! E eu tinha meu irmão ao meu lado, e o abraçava. Eita felicidade!!!E vida que segue!

Entre o jogo contra o Fla e o de hoje, o LULA foi reeleito contrariando os esforços de grande parte da elite brasileira. Acho que venceu o programa de um partido mais próximo de atender os interesses do Brasil, embora muita coisa tenha que sofrer alterações. A despeito do que se dizia, o Partido dos Trabalhadores se fortaleceu nas urnas e isso é importante para a democracia brasileira que ainda engatinha.

sobre mídia e eleições (06/10/2006)

Nesses últimos tempos, tem feito parte de minha rotina acompanhar mais atentamente o comportamento dos jornais (principalmente) a respeito das eleições presidenciais. Penso que se olhasse para os jornais tão atentamente quanto estou a olhar por agora, veria facilmente muitas e muitas desequilíbrios em relação à imensa complexidade de coisas que constituem o cotidiano. Isso não é novidade! Também não é novidade a enviesada cobertura que os grandes jornais dão às variadas plataformas políticas.De vez em quando, entretanto, parece que esse acordo tácito entre o leitor e os jornais se rompe. Ora, sabemos que os jornais (e seus articulistas) carregam a árdua missão de parecerem minimente objetivos e neutros. É claro que não se é: a reflexão me parece "condenada" ao mundo subjetivo (e das opiniões e visões sobre o mundo), a despeito do que pretendem os objetivistas. Há momentos em que o aborrecimento é maior do que de costume, e eu me pego pensando "não leio mais esse jornal. Acabou!"Um desses momento se deu no domingo da eleição. Fuçando pela internet, achei um texto escrito pela Prof. da UFRJ Ivana Bentes que devia ter sido um dos artigos publicados no caderno Mais da Folha de São Paulo. E não foi: a autora foi comunicada que seu artigo não estava afeito aos moldes da edição do referido caderno.Coloco aqui a íntegra do artigo, para aclarar o porquê da não publicação:



Morri no exílio, na província argentina de Corrientes, em 6 de dezembro de 1976, sozinho, vítima de ataque cardíaco, numa fazenda da fronteira. Tentava voltar para o Brasil, de onde me expulsaram com o Golpe Militar depois que anunciei, no dia 13 de março de 1964 num comício para 150 mil pessoas na Central do Brasil que iria fazer a Reforma Agrária, Urbana, as reformas na Educação, a Reforma Eleitoral, Tributária...Não deixaram fazer nada e me derrubaram! As forças mais conservadoras da sociedade Brasileira se uniram e foram convocadas a me depor, toda a imprensa ficou contra mim, Esse já era o terceiro golpe midiático-militar, botaram a classe média horrorizada na rua, as senhoras da TFP, editoriais alarmistas e moralistas, páginas e páginas de jornais, rádio, TV. Assustaram todos até que cai no dia 1º de abril de 1964.Não adiantou, estou de volta! Não sei como, só sei que eu João "Jango" Goulart, ex-presidente deposto, retornei, é dia de eleição e estou concorrendo de novo para Presidente do Brasil. Mudei de partido. Estou grisalho, perdi um dedo da mão (onde?) e me dou conta que as forças que me derrubaram em 1964 estão quase todas aí. Continuo com apoio popular, estou com enorme vantagem nas pesquisas, mas por que os jornais dos últimos meses são todos contra mim e meu partido? Estou sendo de novo linchado? Em 64 diziam que eu ia implantar o comunismo no Brasil e agora que estou implantando a corrupção em Pindorama!Meu assessor me informa que vamos assistir à fita com o meu debate na televisão. Estou reconhecendo o pessoal da pesada de 64. Então tenho uma visão exata de quem eu sou e o que represento no Brasil de 2006, me vendo pelos olhos dos meus inquisidores. Roda o VT. Não, dá um Play. Play it again, Jango! Ouço, e então presente, passado e futuro se dobram na tela da TV.Entrevistador e dono de uma empresa de TV:Sr. Presidente, de todas as reformas que o senhor propôs, uma é a mais perigosa de todas, é um acinte aos empresários da comunicação, de rádio e TV. Sr. Presidente, o senhor tentou entrar na nossa caixa preta, regular nossas empresas com uma Agência. Nós somos contra, Sr. Presidente! Onde já se viu? Deu está dado! Não queremos ninguém novo no negócio. Canal de TV para Ong, para Universidade, para favela? Eles não precisam de nada disso e ainda fazem uns vídeos que são umas porcarias. Qualidade temos nós com essa imagem plastificada, atrizes esticadas digitalmente, programas incitando à delação. Eles a gente emprega pra figuração, usa para vender celular e fazer propaganda da nossa diversidade cultural. Os pobres têm estilo, são vibe, hiper, mob, servem pra vender quinquilharia e show. Mas dar canal de TV pra essa gente, Presidente?Jango: Eu tenho um ministro da cultura que é músico e negro e quer botar ilha de edição, câmeras de vídeo e internet de graça por onde der. É o início da Reforma da Cultura, da Educação, da Comunicação, junto com o Fundeb, o Fundo para a Educação, que eu criei lá em 62, e reeditamos agora. Por que ninguém fala do Fundeb?! Eu tenho orgulho de estar implantando o Fundeb!! As cotas no Brasil! Estou botando os negros e os pobres dentro da Universidade. Temos que acabar o vestibular, tornar o acesso universal. Além disso eu criei o Bolsa Família, tirando um contingente da miséria, é a maior transferência de renda já feita nesse país. Eu apóio o MST, os Sem-Teto! Me deixem fazer as Reformas! As novas e aquelas, que vocês abortaram em 64!Professor-Doutor-Pesquisador:Desculpe, sr. Presidente. Eu fiz mestrado com bolsa Capes, doutorado com bolsa sandwich em Paris VIII, CNPQ, e tive bolsa de pós-doutorado em Oxford. Meus alunos têm bolsa de iniciação artística, científica, extensão... Mas eu sou contra a Bolsa Família!!! É assistencialismo dar 50 reais (é muito, acostuma mal) para pobre. Populismo, sr. Presidente! Minhas bolsas eu ganhei todas por mérito. Mérito! E olhe que sou bolsista há 10 anos! Deus me livre perder minha bolsa!Antropóloga, antes de entrar na roda de debate:Ô diretor, chama um negro aí para aparecer no programa, mas tem que ser contra as cotas. A gente é branco, professor-doutor, não vale. É pro povo entender que é uma merda, que eles têm que entrar para a Universidade sozinhos, por mérito, se não vai cair o nível da universidade. Botar um antropólogo branco, louro de olhos azuis falando mal das cotas não vale, vão cair de pau na gente. Tem que ser negro falando mal das conquistas dos negros.Diretor de TV:Você sabe, a gente detona as cotas diariamente nos editoriais, colunas, manchetes, mas nas novelas tem que ser a garota negra com o galã branco. Botamos na tela uns negros limpinhos, bonitos, cheios de dignidade. Provamos que eles vão vencer sozinhos. Cota para quê? Nunca fomos racistas! Querem criar o racismo no Brasil, sr. Presidente. O senhor está muito mal assessorado nessa área. Aliás, não vai ter cota para negros em empresas de TV, vai? Deus me livre! Não dá pra fazer Escrava Isaura no Leblon.Entrevistador-cronista-consultorSr. candidato, o senhor está na frente das pesquisas, mas como esse povo ignorante, desdentado, feio, pode decidir por mim? Eu, que freqüentava o Palácio do Planalto, que era amigo e confidente do sociólogo, seu cronista-conselheiro. Eu, que sou especialista em pornografia política. Achei que poderia ser de direita mas escrever genialmente como o Nelson, mas não tenho esse talento. Estou aqui me olhando na TV e só vejo um publicitário mal-sucedido, porque o meu candidato a presidência vai perder as eleições e meus amigos vão ficar fora do poder. Sou a encarnação das forças do ressentimento. Pelo menos sou psicanalizado, me acho um crápula, mas tudo bem. Os empresários me pagam 10, 20 mil por palestra ou consultoria para eu anunciar o apocalipse. Não tenho o que perguntar. Só queria dizer olhando bem na sua cara. Eu te odeio, sr. Presidente, e morrerei escrevendo contra tudo o que o senhor significa (baba).Apresentadora de TV:Então Sr. Jango, depois de ouvir isso tudo sobre o seu governo, o que significará a sua reeleição?Jango: "O triunfo da beleza e da justiça". E não me chamem mais de Jango, o ex-presidente morreu, no golpe de 64, exilado na fronteira, em 1976. O novo presidente nasceu das crises que vocês criaram, tentando me derrubar , uma duas, três, quantas vezes? Não estou mais só, em 2006, tenho 55% das intenções de votos, atingi o coração do Brasil, sou uma radicalização da democracia. Meu nome é Muitos. Sou uma potência da multidão.

distorções jornalísticas (26/09/2006)

Ontem, assisti a um programa na televisão que reuniu o historiador e atual coordenador da campanha de Lula à reeleição Marco Aurélio Garcia e o filósofo da USP José Arthur Gianotti. Os dois foram convocados para abordarem o atual quadro político brasileiro. O debate foi certamente interessante por tornar claro a oposição entre as idéias dos dois, inclusive porque se Garcia é formalmente ligado ao PT, Gianotti é identificado por todos como que ligado ao PSDB.Pois é, o programa transcorria normalmente até que o Gianotti citou uma pesquisa do Ibope apresentada pelo jornal “Estado de São Paulo” como argumento que apontaria a razão pela qual o Brasil andaria tendo como governantes figuras com pouca ou nenhum apreço pela tal ética na política. O azar dele foi que o Franklin Martins, âncora do debate, também havia lido tal matéria, assim como tinha tido acesso aos números da pesquisa. Tinha, inclusive, escrito sobre a disparidade entre os números da pesquisa e o teor da matéria em sua coluna no Portal da IG. (Tal coluna se encontra aqui: www.franklinmartins.com.br/post.php?titulo-na-reta-final-e-preciso-cuidado-para-nao-se-envenenar-o-pais)Na verdade, os números não indicam nenhuma grande diferença de reprovação a políticos corruptos quando se leva em conta diferenças regionais, sociais , econômicas. Acontece que o Estado de São Paulo quis publicar isso, à revelia da pesquisa que contratara. E o Gianotti também!Esse é um dos exemplos da distorção que a mídia pode trazer à realidade que intenta observar. Outro caso vai sendo revelado aos poucos: o dinheiro supostamente ilegal, raiz da tentativa de criminalizar a compra de um dossiê por petistas, vai se mostrando legal.

em setembro no Brasil (13/09/2006)

A vida vai seguindo pelo mundo. Aqui no Brasil, vive-se um momento pré-eleições. Depois de um tempo de determinada letargia nas campanhas dos candidatos políticos, parece que o caldo começa a esquentar.As acusações de corrupção ao governo Lula e PT voltaram à tona. O candidato tucano, que parecia imune às pressões internas ao PSDB e pefelistas pela citação de denúncias, cedeu e passa a atacar duramente a figura do presidente numa última cartada para subir na preferência do eleitorado brasileiro. Sua intenção parece, entretanto, condenada ao malogro. Sucessivas pesquisas mostram dia após dia que a escolha dos brasileiros está feita. Há, diferente das outras eleições, pouquíssima variação nas intenções de voto.E o motivo mais aparente para isso é a comparação pragmática entre o governo de Lula e a era FHC. A maioria prefere o atual presidente.E esse fenômeno é paradigmático para fazer pensar sobre a seguinte questão: no Brasil, é comum se falar no alcance das idéias de um determinado segmento da sociedade conhecida como sendo os "formadores de opinião". Entretanto, o que se observa nas atuais eleições é a falta de alcance das palavras e urros dessa minoria, ou mesmo a irrelevância (para a maioria) do seu discurso.Mais ainda, o que é possível perceber é um caminho num sentido distinto: a maioria parace influenciar a minoria. Os segmentos populares foram (e continuam a ser) amplamente favoráveis à reeleição de Lula mesmo na época do aparecimento e da ênfase midiática ao que ficou conhecido como "mensalão", a classe média se manteve reticente. Agora, chamada ao debate, a segunda parece se render à comparação objetiva entre os governos petista e tucano, ajudando a catapultar Lula ao segundo mandato.Entre outras coisas, é por isso que FHC esperançoso de se ver livre da pecha de resposável por mais uma derrota tucana, publicou a tal carta aos eleitores brasileiros, na qual faz duras críticas a posturas adotadas pelo PSDB e lamenta e inexistência de uma figura que ateie fogo à campanha. Parece-me que o tiro saiu pela culatra: todos perceberam tal intenção e FHC vai ter que "andar de lado" por mais um tempo.Enfim, é possível que a população brasileira tenha passado a avaliar mais objetivamente os avanços (sociais e econômicos) que os variados vernizes políticos conseguem imprimir, para compará-los e então decidir, estando menos afeita às influências midiáticas (lembrem o caso do debate entre Lula e Collor, editado pela Globo), e às visões dos tais "formadores de opinião".Penso aqui no Jô Soares, que para mim não passa de um bonequinho de ventríloquo, tentando entender: "Ah, mas depois de tudo que falei e esperneei..."

sobre Borges (10/09/2006)

Tenho lido muito (e com prazer) o escritor argentino Jorge Luis Borges.Leio Borges e seus contos com a mesma atenção com que vejo as coisas mais sérias da vida. Lê-lo é um ato de seriedade: não se permite um só deslize ou desatenção do leitor. Penso que o autor argentino alcançou o mais prodigioso dos objetivos de um escritor: alcançar com suas palavras (seu mundo particular) os mais variados mundos pertencentes aos seus inúmeros leitores. Reflito a respeito disso porque, no meu caso, sempre que leio um de seus contos, vejo neles impressas algumas reflexões que já empreendi durante minha andança pelo mundo. Permita-me o leitor dar dois exemplos apenas: no conto “O Sul”, Borges faz uma comparação (sem revelar) da distância entre o homem ocidental-moderno que pauta sua vida pelo intenso caminhar da história e os homens que vivem sua vida desconectados desse tipo de convenção. Depois (antes no texto), realiza exercício semelhante em relação a um gato com o qual o personagem Juan Dahlmann encontra-se num café para o qual se dirige: “porque o homem vive no tempo, na sucessão, e o mágico animal, na atualidade, na eternidade do instante.” ( Ficções, pp. 188)Não são raros os momentos em que me vejo diante de figuras humanas (ou não) e sou levado a refletir sobre tal questão. Ora, apesar de compartilhamos por instantes o mesmo mundo sensível, a mesma realidade, tenho clareza da não intersecção entre meu tempo e dessas figuras, seja de um casal de imensos filas brasileiros na subida de uma das montanhas da serra friburguense, seja de misteriosos personagens que avisto durante minhas caminhadas noturnas. São vivos? Têm corpos? Pensam? Tenho medo de perguntar... Um outro exemplo se dá com a leitura de dois contos: “Funes, o memorioso” e “Del rigor em la ciência”. Certamente, aprende-se mais sobre ciência e especificamente sobre antropologia (parte do campo científico em que jogo) lendo tais contos do que assistindo alguns de meus colegas antropólogos falarem por horas a fio para suas platéias de alunos ávidos pelo saber. O que de mais fundamental deve se falar sobre etnografia (ou melhor, sobre o risco do etnografismo) senão “no abarrotado mundo de Funes não havia senão pormenores, quase imediatos”, comentário que o narrador do conto faz sobre a incansável (e terrível) tarefa de Funes de se esmerar em descrever a vastidão de todo o mundo. Ou como nesse trecho: “Duas ou três vezes havia reconstruído um dia inteiro; nunca havia duvidado, porém cada reconstrução já tinha requerido um dia inteiro.” (Ficções, pp 125)Ou como na lição dada em “Del rigor em la ciência”, em que um pais na ânsia pelo registro, termina construindo novas cidades para retratar as originais. A mensagem é que evidentemente não se pode fazer uma representação do real na exata medida do real. Seria como construir uma nova realidade. E no conto até se consegue dar fim à atividade, mas quando se consegue, a realidade já se transformou mais uma vez. Ora, tarefa fadada ao eterno insucesso. Por isso, o etnógrafo deve se esforçar por ter como alvo (e assim definir o mais rapidamente possível) uma das dimensões da realidade para não cair no erro de Funes ou dos que pretendem registrar o mundo em termos absolutos.

sobre convivência (10/09/2006)

Noutro dia, fui alvo de assaltantes. Fugi pelas vazias calçadas de Manaus. Terminei me escondendo no único estabelecimento comercial aberto nas proximidades. E não era tarde: a noite tinha acabado de chegar.O lugar onde fui assaltado é uma importante avenida que leva os trabalhadores e empresários para o Distrito Industrial, encarado como "ouro" pelo imaginário amazonense. Pois bem, perto dali estão um grande centro comercial, tido como o mais elitizado da cidade, e uma favela que se consolidou às margens de um igarapé.O curioso é que apesar do aparente agito, por ali não há pedestres. Os carros passam em alta velocidade. Há algum tempo, escrevi um artigo sobre o "espaço público" em Manaus, que foi publicado pelo jornal "O Estado do Amazonas". Em linhas gerais, essa cidade para encontrar um maior desenvolvimento humano tem que refletir sua própria condição. Para isso, compartilhar idéias, diálogos e conflitos com os diferentes grupos é fundamental.Reproduzo abaixo o peuqeno texto que tinha citado há pouco:



ESPAÇO PÚBLICO EM MANAUS: A DIFÍCIL VIDA DO PEDESTRE

Caminhar pelas ruas da cidade de Manaus torna-se cada vez mais desagradável. A experiência de ter quase que sob os calcanhares veículos, grandes ou pequenos, desencoraja o manauara a circular pelo espaço público. As calçadas, sempre estreitas e carentes de uma homogeneização, parecem cada vez mais sucumbir diante do avanço do uso dos automóveis e das vias construídas para o aproveitamento de sua velocidade crescente. Ora, não estou preocupado com a saúde física do morador de Manaus quando escrevo essas linhas, embora a caminhada seja de fato um exercício saudável.O que salta aos olhos é a desvalorização de um elemento primordial para a compreensão da realidade urbana e fundador da riqueza característica da vida nas cidades: a convivência, nos espaços de uso público, entre os diversos “atores sociais”, o diálogo entre personagens e grupos diferentes constituintes desse cenário que é a cidade. A desvalorização do espaço público, dessa forma, tem como significado mesmo a depreciação da heterogeneidade como um princípio para a urbe. O manauara conhece cada vez menos os espaços comuns de sua cidade, usa cada vez menos os equipamentos urbanos dela, como que impelido a um estilo de vida que leva muito mais em conta o automóvel e a freqüência a espaços dedicados ao consumo.Os espaços de consumo, por sua vez, são por princípio excludentes. Neles, os indivíduos não são iguais por sua cidadania, mas se igualam somente na condição de clientes ou prováveis clientes. Visto que os espaços para o consumo se caracterizam pela busca de um tipo de comprador, passa-se a ter uma realidade urbana compartimentada em diversos espaços para o consumo freqüentados por públicos específicos. Portanto, segmentos sociais de renda superior não convivem com segmentos populares.Mais que tudo, desvalorizar a dimensão da vida urbana do contato com o diverso, com o outro, é abrir mão do conhecimento sobre a realidade da cidade e de seus habitantes. Enclausurar-se em carros ou em “shopping centers” é fechar-se à possibilidade de estabelecer linhas de diálogo que possibilitem a construção de novas soluções para o convívio social.

abertura (09/09/2006)

Tal blog, já que ninguém anda querendo publicar o que escrevo ou tenho a escrever, servirá para ser espaço para algumas de minhas idéias. Quanto à dimensão pública que o espaço pode ganhar (digo que pode porque parece que não terei um público assim tão grande: pode se resumir a mim e a ela), não tenho maiores reflexões. Ora não sei o porquê de querer tornar público o que podia ser só meu. Uma razoável explicação é que ando cada vez mais, nessa fase manauara, pela internet. Tenho tido acesso a mais blogs, e percepo o quanto tem coisa boa. Resolvi contribuir.O importante é que o espaço é mesmo meu: escreverei sobre assuntos quaisquer. Falarei de autores que ando lendo, músicas que escuto, de futebol, da chuva e do vento. E quanto aos comentários, não sei se existirão. Se existirem, tentarei ser o mínimo de autoritário que posso ser, censurando o mínimo.